Eu não teria relembrado esta trágica história se uma bola de vôlei não tivesse quebrado minha unha e me obrigado a deixar o treino. Na verdade, não quebrou, eu apenas fingi que tava sentindo muita dor pra sair dali, porque eu não estou em um dos meus melhores dias. Neste caso é melhor sair da quadra do que atrapalhar as outras garotas realmente boas. Ás vezes queria que alguns professores meus pensassem dessa forma ¬¬
Uma bicicleta passou sem iluminação nenhuma na frente do carro. O que seria normal, se não fosse quase oito da noite. Na verdade FOI normal, porque ela não passou exatamente na frente do carro, tava a uns dez metro de distância (sim, eu a vi). Não sei que cara eu devo ter feito, porque meu motorista (na verdade, minha mãe) me perguntou ironicamente se eu nunca tinha visto uma bicicleta antes. Sim, ironicamente.
E então eu me lembrei do dia em que briguei com a minha bicicleta.
Eu devia ter uns seis anos de idade (na verdade, eu digo que tenho essa idade para todos os episódios da minha infância; na verdade, eu nunca lembro quantos anos eu tinha; na verdade, a única coisa que eu tenho mais ou menos certeza que aconteceu quando eu tinha seis anos foi quando uma bicicleta - qualquer tipo de semelhança é uma mera coicidência - sugou meu pé para dentro da roda em velocidade e me fez chorar muito e estragou a viagem pra praia; na verdade, eu que sem querer coloquei meu pé ali). Enfim, eu tinha seis anos de idade, uma bicicleta vermelha duas vezes o meu tamanho e um espírito brincalhão que nunca se dava por satisfeito. Por incrível que pareça, passei a maior parte da minha vida me socializando com pirralhos e explorando o meu condomínio todo santo dia (na verdade, eu não passava da terceira rua porque não gostava do resto, e também porque cansava ir até a quadra). Portanto, uma bicicleta incrível nas mãos de uma piveta como eu teria que estar igualmente disposta a brincar 20 horas por dia.
O que eu não imaginava é que ela não foi muito com a minha cara, e infelizmente não percebi isso logo. Eu deveria imaginar, pois várias foram as tentativas frustradas de pedalar o máximo que eu podia sem cair. Como eu disse, eu era uma criança de seis anos, como iria imaginar que uma grande traição estava para acontecer?
Eu já conseguia pedalar um pouco melhor. Queria novos desafios. Uma rampa, quem sabe. Uma rampa bem íngreme. E lá estava eu, pedalando, em direção a subidinha que tem perto do lixão no estacionamento de pedrinhas. A subida foi um sucesso, porém percebi o perigo na hora de fazer a curva. Deveria ter sido um trabalho em dupla, mas minha bicicleta não estava muito afim de cooperar. E então, o desastre: caí. Mas caí feio. A humilhação era quase pior do que o ralado no joelho. Afinal, aquela era a rua mais empivetada do condomínio inteiro; e, como vocês sabem, pivetes nunca ficam dentro de casa. Eu não deixaria aquilo barato.
Eu me levantei primeiro, e comecei a chutar a minha inimiga. Ela, a ingrata, não mostrava se surpreender com minha raiva; seu plano havia dado certo. Era uma longa reta até meu portão, e aceitei a companhia apenas de olhos curiosos, sem dar muita atenção a eles. Minha bicicleta? Bem, na época eu não sabia muitos palavrões, então não podia mandá-la se foder. Sem trocar palavra alguma, a abandonei exatamente onde ela havia caído. E lá ela ficou.
Entrei em casa com uma fúria tremenda. Liguei a TV, e tentei me concentrar. Porém, como eu era bem conhecida entre a pirralhada, todos notaram que era a minha bicicleta ali. Inocentemente, vieram me avisar que eu havia 'esquecido' minha bicicleta na subida do estacionamento.
- Eu não tenho bicicleta.
Não lembro quantas vezes tive que repetir isso. Foram muitas!
Por mim, ela ficaria ali pra sempre, passando frio e fome, sentindo muito a minha falta, e se arrependendo amargamente do que fez. Eu não estava nem aí.
A rua finalmente estava silenciosa, a noite caía. Era a deixa para as mães chamarem seus filhos para o banho e para o jantar. Tudo ficou deserto; apenas podia se enxergar os rastros de destruição deixado por nós, pirralhos. Algumas plantas arrancadas, alguns chinelos perdidos, areia faltando no parquinho, e uma novidade: uma bicicleta abandonada na rua. A minha ex-bicicleta. Traidora, sem vergonha. Não merecia ser notada, nunca!
Mas foi. E pela minha mãe.
- Você vai até lá pegar a sua bicicleta, agora!
Traída duas vezes no mesmo dia. Pela minha mãe e minha bicicleta. Nada podia fazer, sabia que estava recebendo ordens de uma superiora. Fui, mas fui contra a minha vontade. Toquei em seus guidões, estavam gelados (acho que era inverno). Não subi nela, apenas a guiei até o portão. Contra a minha vontade. Porém, no caminho, fui percebendo o quanto adorava sua companhia. O quanto aquele barulhinho de roda e pedal me animava. O quanto a minha bicicleta era linda. Realmente, era uma das mais legais daquela rua, senão do condomínio inteiro. O quanto eu senti sua falta.
Eu não disse uma palavra, mas acho que ela me entendeu. Estava quietinha também, olhando pra frente, poderia dizer que estava cabisbaixa, mas não me lembro bem. Não estava com o mesmo ar metido que sempre teve. E na metade do caminho já havíamos feito as pazes.
Nunca mais caí daquela bicicleta. E nunca consegui fazer manobras tão incríveis como naquela época.
Hoje em dia não sou tão louca de vitalizar coisas inanimadas. Quando brigo, não são com bicicletas, infelizmente hauhua. Fazer as pazes com pessoas é bem mais difícil :~
E é por essas e por outras que a nostalgia pode ser algo perigoso para um ser humano ¬¬